& comp.

29.8.07


APARECE

Aparece pura gema feminina
Como uma jovem solitária
No meio dos seus vestidos nus
Como uma jovem nua
No meio das mãos que a imploram
Eu te saúdo

Anseio por uma chama nua
Anseio p'lo que ela esclarece
Surge meu jovem espectro
Nos teus braços uma ilha desconhecida
Tomará a forma do teu corpo
Minha bem aparecida

Uma ilha e o mar decresce
O espaço teria um leve arrepio apenas
Para nós dois um único horizonte
Acredita em mim revela-te assedia o meu olhar
Dá vida a todos os meus sonhos
Abre os olhos.

Paul Éluard

29.6.07



Se um dia o meu coração
tornasse a amar outra vez
queria dizer-lhe que não
por todo o mal que que já fez

Se um dia esta alma vencida
voltasse a nascer em mim
preferia acabar com a vida
do que viver sempre assim

Se nesse dia fatal
pudesse encontrar alguém
cujo o olhar fosse um sinal
só meu e de mais ninguém

diria que estava louco
ou que perdi a razão
e tudo seria pouco
pra matar essa ilusão

Mas se entretanto a saudade
for mais forte do que eu
talvez me falte a vontade
de esquecer quem me esqueceu

e ficarei outra vez
nas mãos de quem não merece
como se o mal que me fez
fosse um bem que Deus me desse


Fernando Pinto do Amaral

15.6.07


A vida inteira esperei por
alguém como tu

Mesmo sabendo que não sei como és.

E mesmo que
ainda não se tenha passado
a vida inteira.


Jorge Reis-Sá

10.5.07


O AMOR É O AMOR

O amor é o amor - e depois?!
Vamos ficar os dois
a imaginar, a imaginar?...

O meu peito contra o teu peito,
cortando o mar, cortando o ar.
Num leito
há todo o espaço para amar!

Na nossa carne estamos
sem destino, sem medo, sem pudor
e trocamos - somos um? somos dois?-
espírito e calor!

O amor é o amor - e depois?!


Alexandre O'Neill

1.5.07



MÃE

Mãe! Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei!
Traz tinta encarnada para escrever estas coisas!
Tinta cor de sangue verdadeiro, encarnado!
Eu ainda não fiz viagens
E a minha cabeça não se lembra senão de viagens!
Eu vou viajar.
Tenho sede! Eu prometo saber viajar.
Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um.
Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa.
Depois venho sentar-me a teu lado.
Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei, tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.
Mãe! Ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado!
Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa.
Eu também quero ter um feitio, um feitio que sirva exatamente para a nossa casa, como a mesa. Como a mesa.
Mãe! Passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade!

Almada Negreiros

10.4.07



Habito um corpo - é apenas isso.
As crianças, na rua, preparam
a morte, pisam as folhas
do acaso. Quem as olhará, neste
momento parado na praça das Flores?

Benilde, ao balcão, diz que é uma flor,
talvez a última. Mas as canções,
na rádio, desmentem qualquer sorriso
e banalizam em língua portuguesa
o milagre sem voz do amor.

Não me venham dizer que existo.


Manuel de Freitas

21.3.07



SE TE NOMEASSE CINTILARIAS

se te nomeasse cintilarias
no beco de uma cidade desfeita
e o chumbo dos labirintos derreter-se-ia
na veia branca da noite uma estátua
de areia talvez um barco sulcasse
a cabeleira aquática da fala e
nenhuma porta se abriria sob teus passos

onde estamos? onde vivemos?
no desaguar tenebroso deste rio de penumbra
não beberemos ao futuro do homem
nem festejaremos o rugido triste da fera
moribunda

mas se te nomeasse
que desejo de sexo e da mente a medrosa alegria
em mim permaneceria?


Al Berto

5.3.07



Um amor como este
não pede mar ou praia:
somente o vento leste
erguendo a tua saia.

O resto é o futuro
além, à nossa espreita:
doce fruto maduro
na hora da colheita.


Daniel Filipe

1.3.07



ORDEM E TURBULÊNCIA DO AMOR

Para começar citarei os elementos
A tua voz os teus olhos as tuas mãos os teus lábios

Eu vivo sobre esta terra e pergunto-me
Se nela viveria se tu nela não estivesses também

Neste banho postado em face
Do mar de água doce

Neste banho que a chama
Edificou nos nossos olhos

Este banho de lágrimas jubilosas
Em que penetrei
Pela virtude das tuas mãos
Pela graça dos teus lábios

Este estado humano primordial
Como uma pradaria dos começos

Os nossos silêncios as nossas palavras
A luz que se vai
A luz que de novo volta
A aurora e o crespúsculo fazem-nos rir

No cerne do nosso corpo
Tudo se torna flor e amadurece

Sobre a palha da tua vida
Onde deito a velha carcaça

Em que me tornei por fim.


Paul Éluard

28.2.07



FUGA

Fugir-te .
Mas não hoje - hoje não.
Tenho de preparar-me
para o galope branco da fuga

Não posso dizer-me: parto agora
e partir, pronto.
Pensando que ia, teria ficado todo para trás

Pouco posso contra o teu universo.
Não sou Bogart, não sou Brando
não lutaria por uma ideia política.
Pouco posso - talvez um verso.
Ontem ainda teria ido a tempo.
Oferecia-te a flor que me pedes desde o início
fingiria gostar de animais
e, claro, iríamos ao cinema.
Devia ter convivido mais com o teu Bogart, com o teu Brando.
Devias ter tido o cuidado de investigar a atitude dos príncipes
as certezas dos guerreiros
mas quando cheguei
já o teu universo estava repleto

E agora posso pouco - nem mesmo um verso
Hoje não. Mas quando puder
partirei no primeiro barco.
Procuro o sítio ínfimo
onde os melros se matam sozinhos.


João Habitualmente

26.2.07



ELOGIO DA AMADA

Ei-la que vem, ubérrima, numerosa, escolhida,
secreta, cheia de pensamentos, isenta de cuidados.
Vem sentada na nova primavera,
cercada de sorrisos no regaço lírios,
olhos feitos de sombra de vento e de momentos
alheia a estes dias que eu nunca consigo
morder-lhe o tempo na face as raízes do riso
começa para além dela a ser longe.
A amada é bem a infância que vem ter comigo.
Há pássaros antigos nos límpidos caminhos
e mortes como antes nunca mais
Ei-la já que se estende ampla como uma pátria
no limiar da nossa indiferença.
Os nossos átrios são para os seus pés solitários
Já todos nós esquecemos a casa dos pais
ela enche de dias a nossa solidão.
A dor... é nela até que deus começa
eu bem lhe sinto o calcanhar do amor.
Que importa sermos de uma só manhã e não haver em volta
árvore mais açoitada pelos diversos ventos?
Que importa partirmos num desmoronar de poentes?
Mais triste mesmo a vida onde outros passarão
multiplicando-lhe a ausência que importa
se onde pomos os pés é primavera?

Ruy Belo

arq.